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Eles são O Relâmpago, a associação sem sede que veio despertar o colectivismo em Lisboa

todaymayo 8, 2024 2

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Eles são O Relâmpago, a associação sem sede que veio despertar o colectivismo em Lisboa

Um tipo está a jantar no Porto, entre amigos e conhecidos, quando a conversa sai do prato, entrando pelas pessoas e pelo que elas são. “Tu, a pensar assim, és capaz de gostar de um clube que há lá em baixo.” Lá em baixo é, claro, Lisboa, e o clube é a Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago (ADRR), que, como se vê, é mais conotada pela forma de estar do que pelo número de taças. Prova disso é que foi criada no 1.º de Maio de 2021, sem ter sede, por um grupo de amigos não em plena forma física, mas interessado em “recuperar o espírito das antigas colectividades populares” na era tantas vezes considerada do individualismo.

Apartidária, mas política (“e é fácil perceber de que lado estamos”, solta um dos fundadores), a ADRR veio para mexer no campo social, ainda que isso possa envolver chuteiras e tabuleiros. Todas as sextas-feiras, como esta, a partir das 20.00, pessoas de diferentes idades e géneros disputam a mesma bola, no Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia. Amanhã, no entanto, as quatro linhas podem ser outras, do Varejense ao Mirantense, já que O Relâmpago nasceu e vive há três anos sem sede, prosseguindo com a sua missão em associações amigas, mais ou menos entre São Vicente e a Penha de França, bairros por onde conduzem o seu “empenho político”. “São equipas mistas, 20 a 30 pessoas. Jogam futebol durante duas horas, são de todos os estratos sociais e idades. É algo completamente informal e vêm desde pessoas que estão a jogar pela primeira vez a sócios que fazem parte d’O Relâmpago desde o início. Mas nem é preciso ser sócio”, simplifica Eupremio Scarpa, fundador do clube, entrando com o sotaque milanês a pés juntos. 

ADRR no Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia
Francisco Romão PereiraADRR no Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia

A par dos dribles e remates, cá fora, desenrola-se a outra grande actividade das sextas: a conversa acompanhada de copos. “O desporto não é o centro, é uma ferramenta. Em campo estão umas 30 pessoas, mas cá fora está o dobro, se for preciso, a comer, a beber, a conversar, a conviver. As sextas são um espaço de debate, onde todas as almas se encontram”, afirma Eupremio, historiador do Norte de Itália com o associativismo nos genes. 

Já o boxe, outra das modalidades do clube, acontece há dois anos sob a arcada do Palácio da Justiça, entre a chegada de juízes e advogados que por vezes torcem o nariz aos treinos, o que traz para a conversa outro tema querido ao colectivo: o direito à cidade. “Já foi lá a Polícia, mais do que uma vez, mas estamos no espaço público. Não é preciso pagar a mensalidade do ginásio para fazer desporto, posso fazer na rua, é importante não esquecer isso”, diz Euprémio, para o colega, João Silva, analisar a questão desta forma: “Estas coisas têm a ver com as nossas definições, ou pré-definições, da ordenação da cidade… O lugar dos bêbedos é no Cais do Sodré e está tudo bem. Já o lugar do boxe não pode ser ali, parece mal…” 

O boxe no Palácio da Justiça
Francisco Romão PereiraO boxe no Palácio da Justiça

Quando o motivo que os une não envolve o desporto, os “relâmpagos” podem estar a ver um filme em conjunto, numa praça a celebrar o 25 de Abril (como aconteceu há dias na Paiva Couceiro) ou numa associação de bairro a preparar um “jantar revolucionário” (como anunciou no mesmo mês o colectivo Penha.sco). Para os fundadores, “as modalidades estendem-se a uma presença social e a um papel comunitário muito maior, que estão na essência da associação”. A estratégia muito se usou no século XX, mas foi perdendo fulgor. No entanto, hoje, em que “parece que tudo tem de ser marcado, planeado e pago”, as colectividades têm novamente um papel a cumprir, acredita Eupremio. “Muitos clubes não têm noção da importância que tiveram ou da que ainda podem ter.” 

Convite para "Comida Italiana Revolucionária"
DRConvite para “Comida Italiana Revolucionária”

Camisolas nos carros, taças junto ao sofá

No início, não ter uma sede para reuniões (ou mesmo para arquivar a memória do clube) nem um campo onde jogar foi vantagem. “Criámos uma rede, conhecemos várias pessoas e demo-nos a conhecer como um novo espaço associativo de Lisboa”, explica o dirigente italiano. Mas agora “começa a pesar”. As camisolas, taças, meias, cadernos de encargos, cachecóis, cartões de sócio e brindes (o merchandising é uma das principais fontes de financiamento do clube) misturam-se nas casas de uns e de outros, nas malas dos carros, nas arrecadações. “Já não tenho mais espaço em casa. Está cheia de faixas e cartazes”, brinca Eupremio.

A questão da falta de espaço para associações em Lisboa, porém, começa a ter o peso do “cão que mordeu o homem”, perante o actual quadro de especulação imobiliária. A par do aumento dos preços, o envelhecimento das classes dirigentes e a entrada de outros motores (com fins comerciais, na maior parte) na vida das cidades tiraram força ao movimento associativista, na visão de Eupremio. Ao mesmo tempo, a rotação dos moradores pela cidade e a mudança para fora dela, nos últimos anos, ditou novas dinâmicas. “Mas os que ficam querem ter um sentimento de pertença e podem contar com O Relâmpago para isso”, promete o italiano. 

Como frisou uma reportagem publicada em Abril no jornal Expresso, “as associações culturais e os clubes recreativos estão a desaparecer do centro de Lisboa”. Nela, recorda-se o fecho da Crew Hassan, em 2023, fala-se da Academia de Recreio Artístico, que tem até 2027 para sair da Rua dos Fanqueiros, ou do travão à realização de espectáculos na mais que centenária Sociedade Musical Ordem e Progresso. 

Torneio de xadrez da ADRR na Academia de Recreio Artístico
DRTorneio de xadrez da ADRR na Academia de Recreio Artístico

O caso d’O Relâmpago foi levado à Assembleia Municipal de Lisboa, em Janeiro deste ano, junto às histórias dos colectivos Arroz Estúdios e Sirigaita, ambos pressionados a abandonar os seus espaços. “Até hoje não nos disseram nada”, diz Eupremio, para quem o silêncio não é surpresa. “No mercado privado, é completamente impossível encontrar um espaço, espaços públicos não há e também não vamos partilhar o lugar com uma associação centenária, que tem a sua própria missão”, deixa claro. Na sessão da Assembleia Municipal, a Sirigaita (que chegou a organizar um périplo pelas “associações mortas” de Lisboa) descrevia assim o que está a acontecer: “O fecho de várias colectividades significa a morte de uma cidade inteira.”

Apesar de não ter sede, O Relâmpago, curiosamente, não pára de crescer. A ADRR conta hoje com 340 associados (30% são mulheres, uma percentagem muito acima da média no domínio das associações desportivas), entre arquitectos e vendedores de castanhas, embrenhados nas modalidades do futsal, atletismo, boxe, xadrez, ciclismo e oware (jogo de tabuleiro). Mas todos estão cientes de que uma associação deste cariz só se financia e ganha estrutura com a ajuda de um bar e de um lugar onde possa construir a sua própria memória. “Não é com uma quota anual de 12 euros”, ironiza Eupremio Scarpa.

Como subir?

Se a tentativa de mostrar a importância do desporto popular parece, até aqui, demasiado teórica, a ADRR puxa de um exemplo real para mostrar como um clube pode mexer com a vida de um bairro – e da cidade: a retoma da Subida da Rampa do Vale de Santo António, uma prova de bicicleta de 550 metros, que chega a atingir 22% de inclinação e que havia sido extinta nos anos 50. Em 2021, O Relâmpago caiu à porta do clube organizador e perguntou por ela. “Picámos o Mirantense [Futebol Clube] para que reactivassem a Rampa”, conta Eupremio. O evento voltou e “tornou-se num grande acontecimento da Lisboa popular”. Hoje, a Subida junta perto de 120 atletas, fora as centenas de pessoas na assistência. “Teve tanta adesão que era sinal de que as pessoas queriam mesmo estar juntas, sem stress, na rua. A Rampa rejuvenesceu”, aponta.

Subida da Rampa do Vale de Santo António
Estelle Valente/Subida da RampaSubida da Rampa do Vale de Santo António

Num artigo publicado em Janeiro no jornal de inspiração anarquista A Batalha, Eupremio e João dão conta da Rampa como “uma das provas de ciclismo popular mais emblemáticas da cidade”, desde a sua fundação, em 1941, até ao último ano em que foi realizada, 1954. Quando as bicicletas voltaram, também como “instrumento de activismo”, mais de 60 anos depois, houve “emocionantes repercussões no bairro, na comunidade e no comércio local”, lê-se no jornal. Tudo muito rápido e natural, como um relâmpago. E as tempestades, às vezes, fazem falta.

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